Flávia de Gusmão
Sexo@cidade
Revista JC
Jornal do Commércio
Publicado em 30.08.2009
O homem descongelado.
O que aconteceria se a ciência estivesse apta a congelá-lo ainda vivo e só reanimá-lo 20 anos depois? A resposta, meu amigo, pode ser verificada agorinha mesmo, numa infinidade de eventos sociais, e a afirmativa é válida para homens e mulheres. É de se supor que a máquina que permite tal milagre acontecer não é feita exatamente de porcas, parafusos, titânio e placas acrílicas. Ela é feita de uma substância chamada casamento que, embora menos concreta, é igualmente eficiente. O casamento nos faz entrar numa espécie de cápsula de hibernação, mantida em condições estáveis de temperatura e pressão, da qual só somos retirados algum tempo depois, numa espécie de processo frost-free – o descongelamento rápido de volta a um mundo cheio de situações fora de controle.
É só prestar atenção cuidadosamente naquela pista de dança, naquele bar, naquela festinha ou restaurante. Os recém-descongelados parecem pessoas normais, mas um exame mais atento é capaz de identificá-los. O olhar é o primeiro a denunciar, assim como acontece com os zumbis.
É um olhar peculiar, de espanto em relação às coisas que o cercam. O mesmo que você teria se tivesse sido colocado para dormir na época em que as pessoas compravam linhas telefônicas para revendê-las com um lucro exorbitante e tivesse acordado na época do MP5, como um longo cochilo cuja medida de tempo pode ser calculada em algum momento entre a era pré-internet e o Twitter. É assim que se sentem aqueles que, voluntária ou involuntariamente foram ejetados do casulo matrimonial para a selva do eu sozinho.
Ao contrário do que seria feito num experimento científico, este descongelamento nada tem de rigor profissional. Nenhuma câmera de resfriamento gradual, até hoje, foi eficazmente desenvolvida para aclimatar você que era mantido em estáveis graus abaixo de zero para temperaturas que podem oscilar de 22 a 100 graus centígrados. Numa hora, você é uma adorável peça de picanha embalada a vácuo, coberta por cristais de gelo, na outra, está chiando na chapa quente. E grandemente responsáveis por isso são os amigos, que são cheios de boas intenções, mas péssimos cozinheiros ou cientistas. Eles teimam em aparecer no dia seguinte, com uma garrafa de bebida na mão, insistindo para que voltemos ao que eles chamam de “a vida de antes”. O que eles querem dizer, de fato, é “voltar há duas décadas ou mais atrás”. Taí a única explicação plausível porque ainda vemos alguém fazer a coreografia de Vogue em boates.
O melhor seria que, antes de enfrentar o fogo, nos fosse dado o tempo regulamentar para as diversas fases pré-descongelamento. A fase 1 é a do moletom e da camiseta de propaganda, fardamento obrigatório que tem como acessório indispensável um prato de guloseima. Qualquer uma que corrobore a recém-instalada e mais falsa impossível teoria de que nunca mais vamos querer saber de alguém na nossa vida.
A fase 2 é voltar a acreditar que tomar banho e escovar os dentes não são apenas convenções sociais para nos fazer escravos da indústria da higiene pessoal.
A fase 3 é querer ficar lindo em três dias, entram nesta conta a dieta do pepino, a da sopa e a do limão. Também aí devem ser dados os descontos dos exageros no vestuário, como a pranchinha de surfe ou o colar de contas de madeira pendurados no pescoço de um garotão de 40 anos. Em menor proporção, também podem ser considerados bônus do lapso de tempo as calças capri em quem tem mais de 25, as sandálias de quem vai fazer trekking no Himalaia e o charmoso vômito pós bebedeira desenfreada.
A fase 4 é a mais cruel de todas. O homem descongelado precisa reaprender a arte da conquista. É como se uma lata de palmito em conservas tivesse que aprender a ser vegetal fresquinho de novo. Todas aquelas artimanhas em que éramos extremamente versados em outras épocas estão ocultas por várias camadas de ferrugem. A forma segue a função e se não há função... Reaprender a olhar e ser olhada, reaprender o sutil jogo de corpo, as palavras certas no lugar certo. Dureza.
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