quinta-feira, 5 de março de 2009

O silêncio é de ouro. 1/2

Mino Carta
Cartacapital - Edição nº 532
11/02/2009

Quando escolhi o Brasil como lugar definitivo da minha vida, optei também pelo jornalismo. Existe uma indissolúvel conexão entre as duas atitudes. E explico. Até o golpe de 1964, fui jornalista com séria dedicação profissional. De alguma forma mercenário, no entanto. Cheguei a dirigir uma revista de carros sem saber dirigir os próprios.
Diga-se que, depois da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, quando a pressão militar só permitiu a posse de João Goulart, sucessor constitucional, ao forçar a adoção do Parlamentarismo, eu ficara de sobreaviso. Mas o golpe desabou também sobre a minha alma e motivou minhas escolhas definitivas.
Percebi como dever a prática do jornalismo em um país submetido à ditadura imposta pela classe dominante, com a inestimável ajuda dos seus gendarmes, e que se uma única, escassa linha da minha escrita sobrasse para o futuro teria conseguido conferir um mínimo de importância à minha profissão. Faço questão de sublinhar que não agia desta maneira pelo Brasil, e sim por mim mesmo.
Quarenta e cinco anos depois, vivo uma quadra de extremo desalento, em contraposição às grandes esperanças alimentadas durante a ditadura. Guardava a convicção de que, ao raiar finalmente o sol da liberdade, o Brasil atingiria a maioridade como Estado Democrático de Direito. Esperanças logo frustradas pela rejeição da emenda das eleições diretas após uma campanha a favor que honra o povo brasileiro. Fez-se, pelo contrário, a conciliação das elites, nos exatos moldes previamente desenhados pelo general Golbery do Couto e Silva. A aposta do Merlin do Planalto estava certa e vale até hoje. E o povo? Que se moa.
Fez-se a conciliação para eleger Fernando Collor e para derrubá-lo. E novamente para eleger Fernando Henrique Cardoso em 1994 e 1998. A Carta aos Brasileiros assinada por Lula foi uma tentativa de aparar arestas antes do pleito de 2002, aparentemente mal-sucedida, por ter convencido um número bastante diminuto de privilegiados. A conciliação veio depois da posse, a despeito do ódio de classe que até o momento cega a mídia.
A mim, que estou de olhos escancarados, a Carta do candidato convenceu por considerá-la sincera. Naquela época, não me cansei de definir Lula como um conciliador desde os tempos da liderança sindical. No governo, contudo, ele foi muito além das minhas expectativas. Ou, por outra: deu para me decepcionar progressivamente.
O balanço de seis anos de Lula no poder não é animador, na minha visão. A política econômica privilegiou os mais ricos e deu aos mais pobres uma esmola. Há quem diga: já é alguma coisa. Respondo: é pouco, é uma migalha a cair da mesa de um banquete farto além da conta. O desequilíbrio é monstruoso. Na política ambiental abriu a porta aos transgênicos, cuidou mal da Amazônia, dispensou Marina Silva, admirável figura, para entregar o posto a um senhorzinho tão esvoaçante quanto seus coletes.
A política social pela enésima vez sequer esboçou um plano de reforma agrária e enfraqueceu os sindicatos. E quanto ao poder político? O Congresso acaba de eleger para a presidência do Senado José Sarney, senhor feudal do estado mais atrasado da Federação, estrategista da derrubada da emenda das Diretas Já e mesmo assim, graças ao humor negro dos fados, presidente da República por cinco anos.
Outro que foi para o trono, no caso da Câmara, é Michel Temer, um ex-progressista capaz de optar vigorosamente pelo fisiologismo. Reconstitui-se o “centrão” velho de guerra, uma das obras-primas da conciliação tradicional. Enquanto isso, o Brasil ainda divide com Serra Leoa e Nigéria a primazia mundial da má distribuição de renda, continua a exportar commodities, 55 mil brasileiros morrem assassinados todo ano, 95% ganham de 800 reais por mês para baixo. E 2009 promete ser bem pior do que pretendiam os economistas do governo.
Houve, e há, justificadíssima grita quanto às privatizações processadas no governo FHC. E que dizer do BNDES que hoje subvenciona bilionários para armar a BrOi, a qual (modesta previsão) acabará nas mãos de ouro de Carlos Slim? E que dizer da compra pelo governo de 49% das ações do Banco Votorantim à beira da falência? Em um ponto houve melhoras sensíveis, na política exterior. E aí vem o caso Battisti. Até este serve ao propósito da conciliação, a despeito das críticas desta vez bem fundamentadas da mídia.
O ministro Tarso Genro disse em Belém que a favor da extradição de Battisti se alinham os defensores da anistia aos torturadores da ditadura, “com exceção de Mino Carta”. Agradeço a referência, observo, porém, que o ministro cai em clamorosa contradição. Não foi ele quem, em rompante que beira a sátira voltairiana, sugeriu à Itália baixar uma lei da anistia igual àquela assinada no Brasil pelo ditador de plantão, no caso João Figueiredo?
Talvez o ministro não saiba que, enquanto no Brasil vigorou o Terror de Estado, na Itália houve uma gravíssima e fracassada tentativa terrorista de desestabilizar o Estado Democrático de Direito instalado desde o fim do fascismo por caminhos impecáveis, a começar pela eleição de uma Assembleia Constituinte exclusiva. Lei de anistia por que se, de acordo com o direito italiano, e o de todos os países civilizados, crime de sangue é um somente, sem distinção entre comum e político?
Se eu digo, entretanto, que o Festival de Besteira assola o País desde a época de Stanislaw Ponte Preta, e que se o ministro merece o Oscar do Febeapá, ao menos o professor Dalmo Dallari faz jus a uma citação, recebo as mensagens ferozes e as agressivas admoestações de centenas de patriotas. Pois quem disse que na Itália dos anos 70 estava no poder um governo de extrema-direita, ou que se Battisti for extraditado, de volta ao seu país corre até risco de vida? Ou afirmou que Mestre e Milão, norte da Península, são muito distantes, quando entre as duas cidades há menos de 200 quilômetros? Sem contar que, como me levam a observar vários frequentadores do meu blog, Battisti foi o autor do homicídio de Mestre e apenas o idealizador daquele de Milão.
Está claro que o ministro Tarso não erra ao dizer que a mídia nativa está sempre a agredir o governo de Lula, e contra esta forma desvairada de preconceito CartaCapital tem se manifestado com frequência. Ocorre que, ao referir-se à extradição negada, a mídia está certa, antes de mais nada em função dos motivos alegados, a exibir ao mundo ignorância, falta de sensibilidade diplomática e irresponsabilidade política, na afronta a um Estado democrático e amigo.
De todo modo, Battisti transcende sua personalidade de “assassino em estado puro”, segundo um grande magistrado como o italiano Armando Spataro, para se prestar a uma operação que visa compactar o PT e empolgar um certo gênero de canarinhos patriotas. Isto tudo me leva a uma conclusão desoladora, embora saiba de muitíssimos leitores generosos e fiéis: minha crença no jornalismo faliu. Em matéria de furo n’água, produzi a Fossa de Mindanao. Iludi-me em demasia, mea-culpa.
Donde tomo as seguintes decisões: despeço-me do Blog do Mino e, por ora, calo-me em CartaCapital. Quanto ao cancelamento do blog, confesso certo alívio, com a pronta aprovação da minha fiel Olivetti e dos meus reflexivos botões. Acumulei dúvidas quanto a este espaço, livre também para insuportáveis manifestações de incultura e grosseria. Creio em contrapartida que a revista ainda precise de minha longa experiência profissional, que completa 60 anos no fim de 2009.
Confiei muito em Lula, por quem alimento amizade e afeto. Entendo que o Brasil perde com ele uma oportunidade única e insisto em um ponto já levantado neste espaço: o próximo presidente da República não será um ex-metalúrgico com quem o povo se identifica automaticamente. É possível que conte com a simpatia da mídia, não terá o apoio incondicional da nação, privilégio de Lula. Conforme demonstra aliás o índice de aprovação do presidente, cada vez mais dilatado.
Vai sobrar-me tempo para escrever um livro sobre o Brasil. Talvez não ache editor, pouco importa, vou escrevê-lo de qualquer forma, quem sabe venha a ser premiado pela publicação póstuma.

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