quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Festival de Veneza - O santo e o demônio

Duvido muito que este filme passe no circuito comercial no Brasil, mesmo que ganhe a Palma de Ouro. Se passar será no circuito alternativo de cinema, tipo Cinema da Fundação, Cine Teatro Apolo e Cine Teatro do Parque.

-Ídolos dizem muito de um homem. Seus vilões também. Se analisados sob esse prisma revelador, os diretores norte-americanos Michael Moore e Oliver Stone teriam poucas semelhanças além do ponto de partida documental que alimenta o cinema de cada um. Quis o destino, ou quem sabe a persistência, que seus filmes mais recentes pudessem ser confrontados com poucas horas de separação sob um ambiente favorável tanto à mera badalação como ao debate. Mas foi o primeiro tom que se firmou no Festival de Veneza quando Stone promoveu seu personagem eleito para o documentário South of the Border. Uma promoção não apenas sacramentada no filme, mas também ao vivo, quando o presidente venezuelano Hugo Chávez fez uma chegada digna de movie star, descendo de helicóptero, não de barco, como é praxe na ilha do Lido, que sedia o evento.

Popular, ou populista como preferem seus inimigos, Chávez cumprimentou curiosos, deu autógrafos e saudou bandeiras vermelhas que surgiram na multidão. E se fez acompanhar de Stone, seu hagiógrafo, segundo denominou um arguto crítico italiano. Michael Moore, por sua vez, fez sozinho o papel que lhe cabe há pelo menos uma década. Um tipo solitário e picaresco que acredita incomodar carregando sozinho a bandeira contra as mazelas americanas, do terrorismo ao sistema de saúde. Desta vez seu embate é mais ambicioso e se chama Capitalism: A Love Story.

Corre o risco de ser inexato quem achar que é apenas Chávez o ídolo de Stone. Ao lançar-se sobre o polêmico chefe de Estado venezuelano para descobrir se é verdade tudo aquilo dito sobre ele, o diretor faz um percurso muito maior do que precisaria para chegar à conclusão dos méritos de seu eleito. Entrevista os vizinhos que comungam dos mesmos valores chavistas, por sua vez bebidos das ideias libertadoras do herói latino-americano Simón Bolívar, a confirmar o que os espectadores abaixo da linha do Equador, também aquele de Rafael Correa, já sabem. Evo Morales da Bolívia, Christina Kirchner da Argentina, Fernando Lugo do Paraguai, Raúl Castro, de Cuba, e, claro, Lula, são instigados a dizer que há algo de um poder transformador no reino da América Latina. E o fazem para um diretor deslumbrado, como um navegador diante de um novo continente avistado da caravela. Entre um depoimento e outro, temos um retrato pontual das etapas que o Chávez de origem humilde seguiu na escalada para o poder, de uma visita ao povoado onde nasceu e no reencontro com a casa de sua família aos golpes fracassados e mais tarde bem-sucedidos.

Stone só não é menos condescendente quando busca no recurso da montagem de diversos programas americanos de TV a peça-chave para justificar seu credo. Para ele, cabe a certa imprensa de seu país o papel de vilão que demoniza São Hugo. Encontra-a no canal assumidamente conservador do magnata Rupert Murdoch, a Fox News, no qual uma apresentadora de jornal se escandaliza com a revelação de que o presidente venezuelano masca coca. Ao que seu colega questiona: qual o problema de experimentar “cocoa”?, pergunta, confundindo cacau com a erva danosa a figuras públicas. Mais tarde, num de seus encontros com Chávez, o realizador será visto petiscando uma boa quantidade do produto tipo exportação venezuelano.

Nesse ponto, e em outros do filme, estabelece-se uma sintonia com o estilo picaresco de Michael Moore, comportamento no qual, reconheça-se, é bem mais desenvolto que seu colega. Como se sabe de filmes anteriores, Fahrenheit e Sicko, por exemplo, fazem parte da construção de sua persona cinematográfica o recurso do humor um tanto “clownesco” e as atitudes de efeito que o consagraram. A maneira de encarar seus adversários a ponto de constrangê-los, persegui-los correndo na rua ou lançando mão de expedientes que seguramente terminarão fracassando, prosseguem agora sob novo pretexto.

Capitalism Is Evil, o capitalismo é o mal, decreta Moore. E lá vai ele, nas cercanias de Wall Street, atrás de um demônio vestido de terno e gravata, valise na mão, a verificar a cotação da Bolsa nas páginas econômicas. Ou ainda, numa paródia à moda de Charles Dickens, como bem notou um crítico da Time, entrevistar adolescentes de uma pequena cidade que foram parar na cadeia por ordem de um juiz ao cometerem infrações como dirigir o carro do pai. Tudo para justificar a construção de uma penitenciária milionária. Quando bate à porta de americanos afundados em hipotecas e obrigados a entregar suas casas recém-adquiridas, não tem outra intenção senão condenar o nome precedente a Barack Obama na Presidência, responsável por favorecer uma política de consumo desenfreado. Aquele W. para Stone, um drama político de intenção biográfica e documental realizado em 2008, é o mesmo de Moore e nessa questão o ponto de vista de ambos os realizadores convergem.

Não se enganará, desta vez, quem apostar que o novo presidente americano seria o cara para Moore. Mas o cineasta é precavido e ainda acha cedo proclamar que Obama possa ter o mesmo crédito para os americanos do que Franklin Roosevelt, este sim, o paradigma do documentário por seu pensamento e prática. Certa vez, enviou durante o seu governo tropas não para reprimir operários em greve numa fábrica, mas para garantir que ali permanecessem.

Moore busca parte da história americana a seu favor, e como faz com quase todo o material de que se serve para comprovar sua tese anticapitalista, também busca nos luminares testemunhos garantidos e os manipula. Faz isso com Thomas Jefferson. Ele teria sentenciado a um amigo que “acordos bancários são mais perigosos que exércitos em prontidão”. Quando não os encontra na memória americana, Moore produz momentos com tanto empenho que chega a ser risível, como na passagem em que pede a um professor de Harvard que explique o mercado de derivativos e ouve o outro apenas gaguejar. Se a intenção é o apelo da graça e da excentricidade, são mais felizes as passagens com ataques premeditados, mas que geram um constrangimento inesperado, como quando sai com um saco vazio na mão tentando reaver na porta dos bancos o dinheiro dos contribuintes. Ou quando circunda Wall Street com a faixa amarela que a polícia americana utiliza para delimitar os locais de crime.

Interessante verificar a posição diversa da imprensa diante da presença dos dois realizadores em Veneza. O diário italiano Corriere della Sera elege Moore pela ironia e desbanca Stone porque acredita ser seu filme uma mera “declaração de princípios”. Já o La Repubblica aponta o exagero do anticapitalismo de Moore, que “procura suspeitos sacerdotes católicos para condenar o sistema como demônio” ou generaliza as empresas americanas que embolsam o seguro de morte de seus funcionários e dependentes, deixando para esses somente as lágrimas. Mas trata Stone como controverso, batalhador e nunca banal.

A Time, polindo a prata da casa, disse que a saga anticapitalista de Moore “é, em sua carreira, o maior e mais impactante discurso do que acredita, que a alta roda dos negócios do país está destruindo o pequeno trabalhador, enquanto o governo é conivente com a atrocidade”. Ao que o inglês The Guardian rebate: “Capitalism... é cru e sentimental, desapaixonado e sem vigor; traz um universo moral simples, habitado por homens humildes e bons e por grandes malvados, o que faz com que seja duro resistir à confiança de seus argumentos”. Uma maior atenção dedicada a Michael Moore pelos veículos presentes em Veneza talvez signifique ligeira vantagem, já que a controvérsia é sua pedra de toque. Mas ainda é cedo para fechar um balanço e debitá-lo na conta de um ou outro realizador. É dentro das salas de cinema, longe dos holofotes e da badalação de um festival, que o veredicto final se dará.

Orlando Margarido, de Veneza
Revista "CartaCapital" - Ano Xv - n° 564 - Pag. 54 - 23/09/2009.
www.cartacapital.com.br

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